Carteiro... Longe vai o ano de 1520, em que o Rei D. Manuel I criou o correio público em Portugal. E longe vai também o ano de 1821, em que se iniciou a entrega domiciliária de correspondência em Lisboa. Hoje, grande parte das comunicações são digitais e "apenas os reformados me aguardam, à espera do cheque" mensal. Verdade, mas não toda... Mui- tos são os que anseiam pelo carteiro, que a cada porta vai vestindo a pele de um amigo."Hoje, já ninguém espera cartas de amor." Longe vão os tempos em que essas declarações, ou as de guerra, se confiavam a mensageiros. Hoje, poucos são os que anseiam por uma carta. "Apenas os reformados, na expectativa de um cheque." Más notícias, a virem, não passam de facturas, ou de magros registos bancários. No entanto, e apesar da opinião de Paulo Moura, meu colega por um dia, a verdade é que muitos o aguardam, se não ansiosa, pelo menos genuinamente. Não pelos envelopes que traz no saco, ou pelos artigos que tem para vender. Mas pela amizade sincera que distribui e pela breve companhia com que quebra as rotinas da manhã..Caminho junto a quatro carteiros, devidamente fardados, em direcção à saída do Centro de Distribuição Postal (CDP) 1200 dos CTT, em Lisboa. Passa pouco das 10.00, e à nossa espera estão as ruas de Lisboa, e muitas caixas de correio. À pose decidida dos distribuidores, e ao início determinado da marcha, falta apenas uma banda sonora, que introduzo mentalmente. Escolho as primeiras batidas de Eye of the Tiger, música imortalizada por Rocky III, com Sylvester Stalone. Talvez pelo sentido de missão, e pelo adversário que tenho de enfrentar. Não um pugilista, do mal o menos, mas o peso da responsabilidade, que vou ter de puxar e ir distribuindo colina acima, pela zona do Chiado..Mas, apesar de ter sido a partir das 10.00, e até por volta das 14.00, que me cruzei com os turistas e lisboetas, o trabalho começou quatro horas antes, no número 10 da Rua D. Luís I, uma paralela à Avenida 24 de Julho. Mais precisamente: três horas e 48 minutos antes. Porque a entrada se faz às 06.12, já que a semana de trabalho foi reduzida para 39 horas. "As conduções vindas de Cabo Ruivo [do Centro de Tratamento de Correios do Sul] chegam em quatro vagas, às 03.30, 05.12, 06.00 e 07.00", explica Nuno Pica, chefe de CDP. Por dia, o centro recebe uma média de 58 mil volumes..Dentro do amplo edifício, semelhante a um armazém, há duas zonas distintas. Na primeira, faz-se separação: por volumosos, médios e finos, e pelos diversos giros a fazer. Sentados frente a 64 móveis em meia-lua, os carteiros (ou distribuidores, como a si se designam) vão colocando cartas, postais e outras encomendas, em espaços destinados às diversas ruas que integram o código postal 1200. Depois de tudo separado, carteiros e cartas passam então para a segunda zona: a do sequenciamento. É aqui que, finalmente, entro ao serviço....À minha frente tenho um outro tipo de móvel, adaptado de um modelo utilizado na Nova Zelândia, e que é utilizado em Portugal há cerca de dez anos. Nas várias prateleiras estão assinalados os nomes das ruas e há espaços destinados a cada número de porta. É necessário ordenar a correspondência, de acordo com o percurso que vou efectuar. Numa carta, cujo destinatário é uma empresa, alguém escreveu "número 29 a 33". No móvel, não tenho divisões destinadas a um conjuntos de portas. Pela primeira vez, peço ajuda a Paulo Moura, carteiro escolhido para me acompanhar durante o dia de trabalho. "Isso é número 31, primeiro andar", diz-me. "É daquelas situações que só o carteiro sabe.".E "Flor do Ferragial? Onde é isto?", pergunta-lhe outro. "Tenho aqui um sexto andar que é escada." "Amigo, quer que eu vá lá?", pergunta Moura. "Trabalhamos muito em equipa", diz-me. "O grupo tem seis giros e conhecemos os giros uns dos outros." Na sua totalidade, o CDP 1200 distribui em 40: 33 são feitos a pé e 7 de automóvel, indispensável na entrega de correspondência volumosa e em grandes clientes..Sequenciamento feito, é altura de atar os maços. "Antigamente era à mão", explica-me Moura, mas agora há uma máquina que realiza a tarefa. Os onze volumes de cartas do meu giro são colocados em dois carros com rodas, um para mim, e outro para o meu colega. "Foi a melhor invenção", diz-me Paulo Pereira, outro distribuidor do meu grupo. "Quando comecei, pensei em desistir", confessa, "não imagina o que era andar com o saco às costas"..Está tudo a postos. Só falta tomar o pequeno-almoço no bar de dona Engrácia, um espaço no primeiro andar do CDP, com vista para a azáfama da preparação. São quase dez horas, e "a brincar, a brincar, já temos metade do trabalho feito", diz-me José Fonseca, um outro colega. Para finalizar, e depois da sanduíche de ovo: a bica. "Ora, hoje é a vez de?" Paulo Moura sorri, enquanto retira da carteira um auxiliar de memória. "Aqui até há escala para se pagar o café.". Estaladas, ou algo bem diferente?."Normalmente, não vou a esta velocidade", confessa-me Moura, que segue à minha frente. O carteiro refere-se ao ritmo que, descontraidamente, vai imprimindo à passada, por uma perpendicular à Rua do Alecrim. Não? Não pode ser. Insisto com ele. Quero saber como costuma andar. Não é preciso ir devagar. Além disso, já mo tinha dito, "quanto mais depressa andarmos, mais cedo estamos despachados". Do que eu havia de me lembrar?.É que as rodas do carrinho atestado têm de tocar em simultâneo no lancil, a cada subida ou descida de um passeio. E à nova velocidade da passada, que em qualquer outra situação se tornaria ridícula (porque que se faria a correr, não fosse o carro), raramente consigo coordenar o movimento. A cada rua que atravesso, perco o controlo do atrelado, que se vira no chão, atrasando a distribuição. E os maços de cartas no interior não pesam, sequer, 14 quilos. Estamos no Verão, e "os tribunais e as escolas não estão a funcionar." "No Inverno, há mais correio", explica-me. Na verdade, o "atrelado" não pesa nem metade disso. Hoje são dois carteiros a percorrer o mesmo circuito, e cada um de nós carrega apenas metade da carga..Paramos mais uma vez, junto a mais uma entrada de um prédio. Como habitualmente, as caixas de correio encontram-se no interior. "Primeiro, toco para aquelas que têm correspondência", explica-me, enquanto vai pressionando as campainhas. Eu vou aprendendo, e recuperando o fôlego... Comecei a andar há menos de um quarto de hora e já estou a suar em bica. Paulo está de mangas de camisa, e não leva colete. Quem sabe, sabe, penso. Mas, para mim, uns calções seriam ainda mais indicados. "Quem é?", alguém pergunta lá de cima, de uma janela. "É o carteiro, minha senhora", responde Paulo Moura, projectando a voz. E a porta abre-se?.Recordo as muitas vezes em que a passagem do carteiro me arrancou do mundo dos sonhos? E quando é preciso tocar para os outros andares, ninguém se chateia? Paulo ri-se. "Até já houve estalos", diz-me. "Há pessoas muito mal-educadas, mas não podemos responder na mesma moeda." Lanço um olhar cúmplice ao meu colega Leonardo Negrão, repórter fotográfico, e ele sai-se com a pergunta da praxe: "E senhoras mais atrevidas, também há?" Paulo volta a sorrir. "Quando era assalariado, convidavam-me para subir, logo nos primeiros dias", confessa. "Se aparece alguém mais novinho, é sempre assim." Uma mais-valia da profissão, imagino divertido, quando o carteiro me interrompe o pensamento: "Eu cá faço-me sempre de despercebido.".Amigo, seja bem aparecido.O número 30 da Rua Victor Cordon é um típico e antigo edifício de habitação. Paulo Moura garante que é aí que vamos parar para o café. Antes de subir, para entregar em mão as cartas registadas, coloco as restantes nas caixas de correio, aqui um pouco mais ordenadas, sem que esquerdos e direitos se confundam numa malha caótica. "Vou levar também dois telemóveis", diz-me o distribuidor, que é também vendedor. "Aqueles que têm perfil, há que se aproveitar", explicar-me-ia mais tarde o chefe de CDP, Nuno Pica, e "não, não ganham mais por isso"..Apesar da ausência de comissão, Paulo não vê a nova função como um incómodo, nem tão- -pouco como uma obrigação. Para o carteiro, que mais postais de boas-festas vendeu no Natal (o que lhe valeu um diploma e um telefone sem fios), trata-se, sim, de uma oportunidade. "Temos de olhar pela nossa profissão", diz-me, e "já que tocamos à porta das pessoas..."..No interior do segundo esquerdo, Júlio Sá está sentado atrás de uma secretária. Tenho de matar a sede. "Quem recusa um copo de água não tem direito a entrar no céu", diz-me o funcionário do Sindicato Nacional de Médicos Veterinários. Bebo cinco, e garanto-lhe o paraíso. "Posso oferecer café?", pergunta o carteiro. A hospitalidade de Júlio dá à interrogação do meu colega um ar de formalidade desnecessária. "Foi o Paulo que cultivou esta amizade", diz o homem de origem africana, já na cozinha do organismo sindical. Depois de servir três cafés, Júlio abre uma caixa de bolachas. "Fiquem à vontade", diz--nos, antes de desaparecer pelo corredor..Enquanto as pingas de suor me vão escorrendo pelas costas, e o café pela garganta, vou pensando na vida de Paulo Moura, que todos os dias da semana bate às mesmas portas, e se cruza com as mesmas pessoas. Não é por acaso que conhece por ali toda a gente. Aos 38 anos, já percorre os seis giros do seu grupo de CDP, na zona do Chiado, há cerca de seis anos. Como carteiro soma já 15. "Antes trabalhava num escritório, e fazia horas extraordinárias aos sábados, domingos e noites." "Recusei-me a fazer, também, à hora do almoço", explica, "e fui despedido". Foi aí que decidiu abraçar a profissão que era a do pai. A princípio "não gostava, era muito duro". "Sem a ajuda dos meus colegas, tinha sido um inferno", confessa. Mas, "hoje, já não largava isto". "Podia ter ficado como chefe, mas fui-me embora." "Gosto é de andar na rua.".E é só andando com ele, pelas manhãs de Lisboa, que facilmente se percebe que mais gente gosta que ele ande por ali. Nesta zona antiga da cidade, são muitos os reformados que, aproveitando a visita de Paulo, matam o tédio, e quem sabe a solidão, com dois dedos de conversa. E, nesses momentos, vejo o carteiro vestir outra pele: a de amigo. A de amigo que ouve, e que acompanha. A de amigo que bate à porta, com a singular particularidade de o fazer todos os dias. Apesar disso, parecem saber a pouco, esses breves momentos em que o carteiro distribui sorrisos que ninguém mandou, em que entrega palavras que ninguém escreveu..Quatro horas depois de iniciada a caminhada, os sacos estão finalmente vazios. São perto das 14.00, quando o reencontro com os restantes carteiros do grupo se dá, junto ao Largo de Camões. Só falta regressar ao CDP, e dar conta de todas as ocorrências: cobranças, cartas registadas não entregues, devoluções, vendas efectuadas, respostas sem franquia. A caminhada de regresso é bem mais simples: peso quase nulo, inclinação negativa, e uma mão já capaz de controlar qualquer percalço.."Está pronto para começar", brinca Paulo Moura. E se fosse, de facto, começar... Quanto se recebe para acordar às 05.00, "algo a que nunca nos habituamos", e por levar a correspondência a Lisboa? "O ordenado mínimo. Este grupo ganha cerca de mil euros, mas metade são subsídios", explica Moura. "Quando os privados pegarem nisto? Se puderem pagar 300, porque hão-de pagar mil?" A pergunta não precisa de resposta. "Um gestor pensa assim", acrescenta ainda o carteiro, já conformado... "Somos um alvo a abater.".Um alvo a abater? Recordo-me de que O Carteiro toca sempre duas vezes, e vou descendo em direcção ao Cais do Sodré, pela Rua do Alecrim. Aos molhos de cartas, digo adeus. Por agora? Quando sair no jornal esta história, meto a página num envelope, e envio-o à dona Edite, da [rua] Serpa Pinto. Não vá o Paulo Moura não ter razão para lhe tocar à porta nesse dia? |